quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Um anjo de nome Frederico!

Um anjo de nome Frederico
por Douglas Felliphe
- As crianças estão entrando na capela Felliphe, isso não pode acontecer. Estou sempre encontrando um prato com comida lá dentro. Isso não pode acontecer, é um absurdo!

Foi desta forma que o silêncio de minha sala foi violentamente interrompido. Padre José nem nos saudou com seu habitual bom dia!
Sua fala estava mergulhada em uma profunda preocupação. Alguém estava colocando em risco a Capela que a duras custas foi conseguida junto ao Bispo.

- Já pensou se o Bispo entra na Capela e vê aquele prato de comida? Resolva isso, por favor!

Mesmo sem compreender do que Padre Jose estava falando, eu aceitava as suas preocupações. Sou testemunha de sua luta para a construção da Capela que foi dedicada a nossa Padroeira, Nossa Senhora das Graças. Reuniões e mais reuniões, projetos daqui e dali. Mas enfim, a Capela foi construída - com todas as ressalvas da Diocese, mas Padre José conseguiu.

No interior da Capela estava o Sacrário, bem ao lado de uma relíquia da Igreja: uma imagem de Nossa Senhora das Graças, datada de séculos passados.

Padre José entrou com seu jeito particular de ser, expôs a sua preocupação e foi embora. Deixou-me mergulhado em meus papéis, com o desafio de ser a sentinela de sua Capela.

O trabalho social da Igreja rendeu á capela uma creche e uma escola infantil. Um número alto de crianças é atendido diariamente. Todas peraltas e serelepes. Mas de uma coisa todas sabem: Não poderiam entrar sozinhas na Capela, na “Casa da Mãe do Céu”. Não era aceitável que entrassem na Capela na hora da refeição. Todas deveriam comer juntas. Mas se realmente a regra tiver sido quebrada, porque levar um prato de comida?

Perguntas que careciam de respostas. Afinal de contas a Capela do Padre Jose não poderia correr nenhum risco. O que os fiéis iriam falar ao saber que um prato de comida estaria sendo posto aos pés da Santa?

Na hora do almoço fui para a Capela. Ela estava intacta, sem nenhuma pista do autor da travessura. A porta estava entreaberta. Entrei e tudo estava como sempre: A vela acessa, o Sacrário como morada do Eterno com os seus lírios sob sua superfície, ao lado estava a Imagem de Nossa Senhora das Graças, imponente em sua altura, com quase um metro e meio, mas delicada em seus detalhes. Quanto maior se é, mais detalhes se têm! Guardando a imagem, sua redoma de vidro. Trata-se de uma relíquia.

Aproximei-me do Sacrário e fiz minhas orações. Olhei para a Imagem da Santa e fiquei em silêncio. No fundo da Capela havia uma pequena sacristia. Fui para lá e fiquei aguardando. A porta ficou entreaberta, esperando para ver quem era que estava visitando a Capela diariamente com um prato de comida.

Ouvi as crianças se arrumando no refeitório para a refeição. A Capela continuava da mesma forma, porta entreaberta, o Sacrário, a Imagem e eu.

Após uns quinze minutos, alguém surge à porta da Capela.
Abriu a porta com cuidado, na intenção de não fazer barulho. Colocou a cabeça para dentro e olhou para ver se não havia ninguém. Era Frederico!
Frederico é um menino novo em nosso meio. Esta na Escolinha há mais ou menos um mês. Chegou até nós vindo de um abrigo do Poder Publico. Um menino com apenas oito anos de idade, mas que já experimentou os piores sabores da vida.

Desde sempre nunca conheceu o pai. Quis a vida que fosse assim. Cresceu vendo o pai de seus amigos brincarem com seus colegas. Adentrava as brincadeiras não para se alegrar, mas para viver por apenas alguns minutos a alegria de ser filho, de ter pai!

Mas se por um lado nunca teve um pai, de outro tinha uma hiper mãe. Dona Josefa. Mulher de fibra e de garra. Educou sozinha o seu filho. Não abriu mão do ato de ser mãe, ao contrario, foi mãe e pai para aquele menino.

A luta foi tanta que a levou a contrair uma pneumonia. Cuidou de seu filho sem hesitar. Priorizou tanto o garoto que se esqueceu de cuidar de si mesma.

Nos últimos meses a vida não foi nada fácil para aquela família.
Se não bastasse à vontade de ter um pai, Frederico convivia com sua mãe lutando contra a fome de alimentos, de comida. Dona Joséfa não sabia o que fazer: comprar alguns remédios ou um pacote de arroz para seu filho.

A vida por seus motivos lhe tirou seu pai, sem mesmo ele nunca o ter visto. Agora a mesma vida, através de uma pneumonia, lhe tirava a sua mãe.

Dona Joséfa não suportou a doença e faleceu. O motivo foi a pneumonia. Mas na inocência de Frederico a sua mãe morreu de fome.

Sem família, foi parar nas mãos do Poder Publico. Ficou em um abrigo, entregue a realidade desses centros de cuidados, mas que infelizmente nem sempre conseguem cuidar dos garotos e garotas.

Um dia Frederico encontrou com um Juiz em uma dessas visitas. Disse ao magistrado que não queria ficar ali e, caso fosse obrigado a ficar, iria fugir.
O Juiz não poderia fazer: mas fez! Entrou em contato conosco e conseguimos uma vaga. A partir de então Frederico fica no colégio da igreja durante o dia e volta para o abrigo no final da tarde.

Agora ele estava ali, na porta da Capela. Abriu a porta e entrou.
Mas não entrou simplesmente como se estivesse em um lugar comum. Aquele espaço era especial. Tirou as sandálias e as deixou no canto da porta. Limpou seus pés no tapete e adentrou cautelosamente.

O ato de deixar as suas sandálias demonstrou o seu respeito. Naquele lugar ele não queria entrar com as sandálias empoeiradas, com as marcas de lágrimas derramadas em seu dia a dia. Ali era lugar do coração, da esperança.

Entrou silenciosamente. Como anjo foi pisando e voando sobre aquele chão. Não havia barulho, era apenas silêncio.

Fiquei imaginando que Frederico estava fazendo o mesmo movimento dos anjos ao se aproximarem do Sagrado. Silêncio e respeito. Não como nós, que entramos com celulares tocando, tropeçando nos bancos e gritando a comadre que está do outro lado da Igreja.

Permaneceu diante do Sacrário com o mesmo silêncio de sua entrada. Eu apenas admirava. O seu olhar falava coisas que ninguém poderia ouvir, e realmente não era para ninguém ouvir.

Depois de alguns minutos colocou a mão em seu bolso e tirou uma fruta, colocando-a aos pés do Sacrário. A maçã fazia parte de seu almoço.
Afastou-se do Sacrário e caminhou em direção a Imagem da Santa.
O mesmo movimento de silêncio e palavras não ditas se repetiu. Apenas um diferencial. Uma lágrima surgiu em seu rosto. Pegou um prato de comida que havia deixado sobre o banco e colocou aos pés da Santa.

Eu apenas olhava. Aos poucos foi se afastando da Imagem, mas com o seu olhar fixo na Santa. Não me contive e aproximei-me, respeitando o seu clima e o seu rito de silêncio.

Ao chegar a seu lado, nada falei. Minha intenção era comungar daquele momento lindo de adoração.

Frederico, sem tirar seus olhos da Santa e com a voz embargada me disse em tom baixo: - Tio, eu sei que eu não posso ficar aqui, mas não pude resistir. A Tia Odiméia falou que neste lugar mora o Papai e a Mamãe do Céu. Quem dá comida para eles? Minha mãe morreu de fome e eu não vou deixar a Mãe do Céu morrer também!”

A inocência daquela fala me tirou o ar e quebrantou o meu coração. Não havia resposta para aquela pergunta.

Frederico, ainda com os olhos fixos na Santa, procurou minha mão com seus dedos singelos e continuou a sua fala: - O senhor não tem a chave dessas caixas não? Quero tirar o Papai e a Mamãe do céu de lá, acho que eles estão com fome.

Naquele momento o Eterno se fez presente. Com poucas perguntas aquele menino, que já havia passado por tanto sofrimento, me propiciava experimentar a mais bela defesa de Teologia.

Segurei firme em sua mão, olhei para ele e apenas o abracei. Saímos da Capela alimentados. Não lhe falei nada. Ele também não pronunciou mais um palavra sequer. Ao sair pegou as suas sandálias e correu para brincar com seus amigos.

Eu fiquei por alguns instantes ali na porta da Capela, olhando para a Santa e ecoando em mim a fala do menino.

Aprendi muitas coisas naqueles poucos minutos com Frederico. A sensibilidade da criança, a inocência de seus pensamentos, o gesto singelo de zelo e o carinho pelo Sagrado. Mas algo muito em especial transformou a minha vida: O conceito dos Sacrários abertos, escancarados!

Ao perguntar a mim onde estava a chave para abrir o SACRÁRIO, Frederico expressava um desejo do Eterno.

Fica uma lição para a vida: Somos Templos Vivos de Deus. Sacrários Vivos! Muitas vezes trancafiamos em nós o Sacrário, limitamos Deus a nossos gestos, a nossos gostos, a nossas vontades.

A pergunta do garoto deve ecoar, mas não pelas construções arquitetônicas, mas em nossos corações.

Onde está a chave de nosso Sacrário? Onde ela está para abrirmos e o levarmos a todos aqueles que precisam experimentar esse Deus Vivo, que insiste em habitar em nós?

No ato de levar comida para o Sagrado Frederico me alimentou. Deus tem muita mais fome de nós, do que nós Dele. Deus é faminto por nós!

Ah, antes que eu me esqueça, com relação a Padre José eu não poderei fazer. Como disse meu amigo Frederico, “A mamãe do Céu não pode morrer de fome”!

4 comentários:

Anônimo disse...

Pedi ao Felliphe para simplesmente escrever um texto, algumas poucas linhas para um amigo nosso e ele me vem com esse maravilhoso texto!
Da proxima vez, nao economizarei no pedido....

Abraços de seu amigo
Arlindo Cruz

Anônimo disse...

"Quanto maior se é, mais detalhes se têm"

Queria eu ser poeta como esse meu amigo, queria eu ser sensivel como meu amigo.

" O senhor não tem a chave dessas caixas não? Quero tirar o Papai e a Mamãe do céu de lá, acho que eles estão com fome".

As chaves eu agora as tenho, suas palavras, seus textos sao chaves que abrem as portas do Eterno em nós.

Obrigado companheiro
Frei Beto

Bruno de Alencar disse...

A sensibilidade do texto também nos alimenta. O Sagrado torna-se acessível quando lemos palavras como estas, que nos aproximam de Deus, proporcionando instantes de devoção, mesmo não estando em um 'templo'. Porém quero eu acreditar que Eu sou o templo de Deus e, assim sendo, em minha religiosidade, independente de religião, pude ter uma ligação direta com o sagrado nesse instante.

Mandou muito bem...

Bruno de Alencar

Anônimo disse...

Maravilhoso o texto, meus sinceros parabéns.
Fico feliz em ver pessoas que ainda conseguem trazer o Divino para o nosso tempo. Pessoas que com seu dom de escrita consegue conjulgar o Divino com o Real, a crença com a necessidade do dia a dia.

Parabens.
Raphael